Hugo Barra, o brasileiro mais poderoso da tecnologia

O executivo fala pela primeira vez da entrada no Brasil da gigante chinesa Xiaomi, de jornadas de trabalho de 14 horas – e de como perder a namorada para um dos fundadores do Google não prejudicou sua carreira

Hugo Barra, o brasileiro mais poderoso da tecnologia

São 7h30 da noite em Pequim quando Hugo Barra consegue uma brecha em sua agenda para a primeira entrevista na qual fala sobre a entrada no Brasil da Xiaomi, atual líder do mercado chinês de smartphones. Uma pausa, que fique claro. Não era o final do expediente. “A coisa aqui na China é um pouco diferente”, diz ele. “A gente trabalha muito mais.” A jornada é impressionante. Depende muito do dia, mas normalmente vai das nove às onze. Das 9h às 23h. Não raro, passa um pouco da meia-noite. Diariamente. Com frequência, aos sábados também.

Não seria um exagero dizer que Hugo Barra é o brasileiro mais poderoso da atualidade no Vale do Silício. Seria apenas um erro geográfico do tamanho do Oceano Pacífico. Ele trocou a Califórnia pela China em meados de 2013 e hoje comanda, a partir de Pequim, a expansão da gigante high-tech Xiaomi para os maiores e mais desafiadores mercados emergentes do planeta. Depois de liderar o desenvolvimento de produtos para a plataforma Android do Google, Barra, na posição de vice-presidente internacional dessa multinacional chinesa, se tornou um executivo global que opera ao mesmo tempo em meia dúzia de fusos horários. Daí as jornadas de até 15 horas.

Ele comanda a operação inteira da Xiaomi fora da China. Isso não significa manter uma estrutura já estabelecida, mas sim liderar um processo de internacionalização. Apesar do porte intimidador – mais de 60 milhões de celulares vendidos em 2014 –, a empresa fez cinco anos na primeira segunda-feira de abril. É um negócio predominantemente focado na China, e a função de Barra é levá-lo agora para o resto do mundo. Levar produtos, sim, mas também engenharia, logística, distribuição, estratégia de marketing e demais aspectos do negócio para cada um dos países onde decide se estabelecer – adaptando o modelo de negócio aos diferentes mercados. Claro que, para isso, é preciso contratar equipes e fechar parcerias com empresas, ambas locais.

Diante dessa job description, é fácil imaginar Barra preso à rotina de reuniões e viagens que domina a vida de muitos de seus pares. A Xiaomi, no entanto, tem uma forma de trabalhar bem diferente inclusive daquela com que ele estava acostumado. As equipes resolvem grandes quantidades de problemas por mensagens e chats. “É uma conversa mais ou menos em tempo real e é como se você tivesse várias reuniões ao mesmo tempo. Eu estou agora falando contigo e, ao mesmo tempo, estou em duas outras reuniões, que estão acontecendo em paralelo”, diz.

Antes de se aventurar na Índia e no Brasil, a Xiaomi testou suas forças em Cingapura e na Malásia. “São países do sudeste asiático onde a cultura chinesa está presente. Então, é um pouco mais fácil entrar”, afirma. “Muita gente fala chinês e já tinha ao menos ouvido falar da nossa marca, mas do ponto de vista comercial era completamente diferente de fazer negócios na China.” O passo seguinte seria dado no mercado indiano. “Nossa entrada na Índia foi o maior barato”, conta. “A gente chegou com a expectativa de não ser conhecido pelo mercado, mas a comunidade high-tech, que é bem forte lá, ficou logo entusiasmada. O boca a boca foi muito mais poderoso do que o previsto inicialmente.”

A Xiaomi tem a ambição de chegar à primeira posição em todos os mercados nos quais entra. Tem também plena consciência de que isso levará tempo. Quanto tempo? “A gente não fixa metas”, desconversa. Quais os trunfos? “Preço é uma das vantagens que trazemos para esses mercados, mas não é só isso. Criamos produtos com componentes de altíssima qualidade, hardware e softwares muito integrados e uma experiência para o usuário superbacana.”

Não é (só) mão de obra barata que explica os preços muito competitivos. A Xiaomi, em geral, dispensa o intermediário e vende direto ao consumidor. “Somos uma empresa de comércio eletrônico. Então, a gente vende diretamente para o cliente final”, observa. Claro que com isso a Xiaomi tem um custo de venda mais baixo para cada item comercializado, porque não paga comissões de distribuição ou custos de logística, marketing e pontos de venda existentes nos canais mais tradicionais do varejo físico. Preço baixo é uma consequência dessa estratégia. “Mas a empresa não tem como meta criar produtos baratos. Nem terá”, nota.

Segundo Barra, a Xiaomi anda “superanimada” com o mercado brasileiro. Em primeiro lugar, porque o comércio eletrônico tem crescido rapidamente e já é relativamente maduro, o que aumenta as chances de sucesso do modelo de negócio da empresa no país. Outro fator de entusiasmo é a existência de uma comunidade nacional de usuários do sistema operacional da Xiaomi, chamado MIUI (pronuncia-se Me You I). Baseado no Android, ele é “personalizável” de um modo que agrada aos geeks. “O sucesso desse sistema no Brasil tem sido fenomenal muito antes de chegarmos ao país”, diz. A comunidade MIUI Brasil existe desde 2011. Tem 19 mil membros no Facebook e 10,3 mil no Google+ em finais de maio. Pequena, porém animada. “O grau de engajamento do brasileiro na nossa página no Facebook é maior do que em qualquer outra página que a Xiaomi tenha”, afirma Barra, entusiasmado.

Ele guarda de seus anos no Google a lembrança de usuários brasileiros serem os primeiros a adotar novos produtos. Por isso, acha seus conterrâneos mais receptivos a novidades (inclusive a marcas novas) que usuários de outros locais. A poucas semanas da chegada da Xiaomi ao país, Barra faz segredo sobre a estratégia de comunicação da marca no Brasil e a escolha dos produtos a serem lançados. “Vai ser surpresa”, limita-se a dizer.

Vai ser bem difícil também. “O brasileiro realmente adora a internet. É case do Google e do Facebook em número de usuários”, diz Reinaldo Sakis, gerente de pesquisas da IDC Brasil. Isso não quer dizer, porém, que haja espaço para toda novidade. No segmento de celulares, 95% do mercado está concentrado em seis grandes marcas, o que não acontece em outros países emergentes. “É muito difícil acreditar que um novo entrante consiga ultrapassar essa barreira muito rapidamente”, pondera Sakis. “Eles (os chineses) até vão ter um volume razoável (de vendas) no início, até pelo tamanho da empresa e por sua representatividade mundial, mas é improvável que entrem para disputar mercado cabeça a cabeça.” Sobretudo enquanto não tiverem produção local (confirmada por Hugo Barra em vídeo no Facebook, mas ainda sem data definida) – e, consequentemente, incentivos fiscais.

 

Chegar vendendo barato é inevitável para quem precisa construir uma marca. Dependendo de produtos importados, isso só será possível comercializando com prejuízo para “comprar market share”. Sakis prevê que a marca a ser usada no Brasil será apenas a Mi. “Se vierem com qualquer anúncio de Xiaomi, todo brasileiro vai associá-los com produto ‘xing ling’. Os produtos são bons, mas a percepção que normalmente o brasileiro tem de itens chineses é de possuírem baixa qualidade”, argumenta. “A barreira é muito grande para ser transposta. Agora em 2015, é impossível imaginar que eles venham para ganhar. Em 2016, vamos ver.”

Mineiro de Belo Horizonte com 38 anos, Barra é cientista da computação, executivo de firmas high-tech e (ex-)empreendedor. Antes de se tornar vice-presidente internacional da Xiaomi e se mudar para Pequim, foi gerente de produtos do Google entre 2008 e 2013 – em Londres e na Califórnia. Enquanto se formava no MIT, trabalhou tanto no media lab como no laboratório de inteligência artificial da universidade. De algum modo, também conseguiu tempo para estágios na Netscape, Disney, Merrill Lynch e Mckinsey. Em 2000, fundou uma startup de reconhecimento de voz chamada Lobby7 com colegas do MIT. Sua carreira decolou de vez.

A empresa foi adquirida em 2003, mas Barra seguiu como executivo até 2008 – quando foi contratado pelo Google. Dois anos depois, ele se juntaria ao time do Android, liderado pelo fundador da plataforma móvel, Andy Rubin. A partir de então, subiu direto até a vice-presidência. Entre 2011 e 2013, Barra apareceu nas listas de executivos mais influentes das revistas Wired e Época e do site Business Insider. A ida para a Xiaomi foi uma surpresa e tanto para o mercado.

Barra define a troca de uma das empresas mais conhecidas e admiradas do planeta por um empregador virtualmente desconhecido fora da China como a coisa mais legal que já fez na vida. Afirma até que a visão de Andy Rubin ao criar o Android como uma plataforma aberta era basicamente aquela transformada pela Xiaomi em realidade. “A ideia era pegar essa plataforma aberta e construir em cima dela coisas muito legais”, relembra. Ele conta que, por isso, admirava a empresa chinesa desde a sua criação. Além do mais, conhecia dois dos fundadores da Xiaomi, que foram engenheiros do Google. Isso lhe deu certa familiaridade com uma empresa desconhecida para quase todos à sua volta. Seus pais, por exemplo, nunca tinham ouvido falar na Xiaomi até ele ir trabalhar lá dois anos atrás. “Mas eu conhecia muito bem a companhia e já sabia que ela tinha uma coisa muito especial, que é uma cultura única, com muito em comum com o Google e com outras das empresas que sempre admirei”, elogia.

Barra diz que nunca teve medo de que a mudança parecesse um downgrade em sua carreira. Era ótimo estar em uma empresa com tanto impacto no mundo como o Google, nota. “Mas mais legal ainda é construir uma nova grande empresa. É como se estivesse trabalhando, hoje, em algo que pode ser a próxima Apple, o próximo Google. É dez vezes mais legal.” Não é o que parecia na época da mudança. Pelo menos para quem olhava de fora.

Há mais ou menos dois anos, Sergey Brin, o cofundador do Google, se apaixonou por Amanda Rosenberg, uma gerente de marketing do Google Glass, e se separou da mulher, Anne Wojcicki, CEO da empresa de testes genéticos 23andMe. Personagens célebres como esses, é claro, atraíram a atenção da imprensa para o relacionamento extraconjugal num ambiente de trabalho, que desperta como poucos a curiosidade geral. Na outra ponta do affair estava Hugo Barra, então namorado (e superior hierárquico) de Amanda. A história se tornaria pública em 28 de agosto de 2013. No mesmo dia, o Google revelou que Barra estava deixando a empresa para assumir uma posição na Xiaomi. Diante da coincidência, a imprensa especulou que ele possivelmente havia sido “incentivado” a trocar o Vale do Silício pela distante Pequim.

Os rumores, segundo Barra, não têm nenhum fundamento. “Se você enxergar o que a nossa empresa está fazendo hoje, que é o que eu via há dois anos quando vim para a Xiaomi, vai entender muito bem porque eu tomei essa decisão”, diz. “No mundo da tecnologia, a minha escolha foi muito bem entendida. Não só lá atrás, em 2013, quando anunciei minha saída do Google, como principalmente hoje, quando todo mundo já conhece a empresa.” Para Barra, o público leigo é que talvez não compreenda a troca de emprego, por desconhecer a Xiaomi.
Sobre o fato de a ex-namorada tê-lo trocado por um dos mais famosos empreendedores do mundo, uma ironia: “Não tenho nada a ver com o mundo de Caras”.

Depois de um ano e meio em Pequim, convivendo não só com chineses, mas com uma legião de estrangeiros – de americanos a gregos; de coreanos a russos –, ele chegou à conclusão de que o brasileiro consegue se virar em qualquer lugar. “A gente tem um nível de instinto que ninguém tem”, diz. Por exemplo, para navegar pela China. Ou seja, caminhar pelas ruas, atravessar as largas avenidas, passear à noite. “Estou acostumado com a zona que é o trânsito no Brasil, a sempre prestar atenção ao que está acontecendo e a ficar esperto com minha mochila”, afirma. Claro que não é como se mudar para os Estados Unidos, onde falando um pouco de inglês não se passa aperto. Na China, o idioma é um problema sério. “Você não consegue nem ler uma placa de trânsito e ninguém na rua fala inglês”, conta. No início, admite, a incomunicabilidade é chocante. Depois, acostuma-se.

Ele aprendeu um pouco do que chama de “chinês de sobrevivência”. Entender a língua não é fácil, mas o básico, diz, é tranquilo. O idioma oficial de sua equipe é o inglês, e Barra adora quando o pessoal do Brasil vai a Pequim, pois pode falar português em seu escritório no 11º andar do QG da Xiaomi. Embora lidere a área internacional, ele tem procurado recrutar chineses ou estrangeiros fluentes em mandarim para o seu time. “Senão a gente acaba ilhado, porque o resto da companhia fala chinês.” Fora da China – por exemplo, na Malásia, Indonésia, Índia ou no Brasil –, Barra contrata pessoas locais que falem inglês e tenta ter também, pelo menos, um ou dois chineses.

Asiáticos em geral e chineses em particular são conhecidos mundo afora como trabalhadores extremamente empenhados e disciplinados – mas não propriamente inovadores. Barra rejeita o estereótipo. “A China já é hoje um dos grandes polos mundiais de inovação”, diz. “A razão pela qual ninguém ainda enxergou isso é porque boa parte dessa inovação acaba ficando por aqui.” Por exemplo, os aplicativos mobile. “Os apps na China são mais bem-feitos e muito mais completos do que os do resto do mundo”, afirma. As razões para isso são várias: profissionais bem treinados, escolas de engenharia e de design fantásticas e um grau de concorrência mais elevado que em qualquer outro lugar. No segmento de smartphones, entre os líderes do mercado internacional estão não só a Xiaomi como a Lenovo e a Huawei. Em comércio eletrônico, encontram-se hoje na China as mais sofisticadas empresas do mundo.

Exagero? Dê um desconto a Barra em sua lua de mel com o país. Ou com “as Chinas”, já que, segundo ele, são dezenas de países dentro de um só. Na culinária, isso fica claro. “Sempre tem uma coisa nova para provar”, diz ele, fascinado pela gastronomia local. Para queimar as calorias adquiridas em suas incursões pelos restaurantes de Pequim, ele tem ampliado suas habilidades com a raquete. Aderiu ao badminton, um dos esportes nacionais da China. O pingue-pongue já estava em seu repertório – e ele até achava que jogava bem. Até ir morar na Meca do tênis de mesa. “Estou aperfeiçoando estratosfericamente meu pingue-pongue”, afirma.

Barra também tem viajado, embora não tanto quanto gostaria. Peça-lhe uma recomendação de lugar especial para conhecer na China, e ele não hesita em sugerir a cidade de Chengdu, no sudoeste do país. “É um dos lugares mais lindos que já vi na vida”, lembra. Ou as Montanhas Zhangjiajie, que dizem ter inspirado as montanhas flutuantes de Pandora no filme Avatar. “É uma coisa absolutamente fantástica”, empolga-se ele antes de se despedir para encarar mais três ou quatro horas de trabalho noite adentro antes de encerrar o expediente. A coisa na China é um pouco diferente.

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